Uma Luz na Rua Sem Saída

mariano 120824Quando era moleque e morava em Osasco, na região metropolitana de São Paulo, eu jogava bola numa rua sem saída. E mal podia imaginar como um dia isso representaria a minha ligação com o Galo.

Era um tempo de leveza. Logo cedo a gente se encontrava, subia até a rua de cima, que era a rua sem saída, montava os golzinhos com chinelos ou tijolos e esquecia do tempo. Esquecíamos de nós.

Não tinha escola, não tinha almoço, não tinha nada nem ninguém.

Só o futebol.

Tirando as arquibancadas de um estádio, poucas vezes eu olharia tão de perto pra tantos rostos felizes reunidos no mesmo lugar. Ali, nas peladas de Osasco, nós nos bastávamos. O resto do mundo só voltava a existir lá pro finalzinho da tarde, quando o sol ia embora e por um ou dois minutos ficávamos sem enxergar nada. A escuridão trazia apreensão e um pouco de tristeza com ela. Se a luz do único poste da rua não acedesse, já era: bola só na manhã seguinte. Seriam longas horas em que tudo ia parecer perdido e sem sentido.

Mas aí a lâmpada do poste piscava uma vez. A gente ficava na torcida. Todos os moleques parados olhando pra ela. A luz tremelicava. Acendia, apagava, acendia, apagava, tremelicava de novo e… finalmente acendia de vez! A nossa farra era maior do que nos gols que marcávamos. Podíamos continuar jogando até cairmos de exaustão. Podíamos continuar vivendo. Porque até numa rua escura e sem saída havia uma luz.

Nessa época eu gostava mais de ficar o dia inteiro na rua jogando bola do que dentro da minha casa. Levávamos uma vida modesta, mas sem passar fome. Meus pais sempre foram muito trabalhadores e nunca faltou comida na nossa mesa. O que me incomodava um pouco era a distância entre nós. Não existia tanto carinho, atenção, conversa. Talvez nem existisse tempo pra isso…

Eles vieram de pau-de-arara de Pernambuco pra São Paulo. Pessoas endurecidas pelas circunstâncias da vida. Meu pai, em particular. Um homem analfabeto e bastante duro com a gente. Hoje eu sou capaz de entender. Tenho uma filha, não vivo de bicos, ganho bem e sei como é difícil ser responsável pela criação e pelo desenvolvimento de alguém. Imagina ter a grana curta, poucas alternativas e ser responsável por onze alguéns…

Sim, meus pais tiveram onze filhos, que infelizmente nunca formaram um time. Nós crescemos meio que “cada um por si”. E eu só fui sentir o peso disso já adulto, num dia em que a luz do poste não acendeu e eu me vi numa rua sem saída afundando no breu. Vocês sabem do que eu estou falando: da minha primeira passagem no Atlético, quando fui demitido por justa causa e precisei deixar o clube dentro de um carro de polícia pra não apanhar de torcedores enfurecidos.

Foi em 2008 e eu tinha 22 anos. Sempre meio retraído, de personalidade mais fechada, eu confesso que estava deslumbrado com o que o futebol me oferecia, as facilidades todas. Um garoto saído da periferia agora tinha campos e mais campos pra treinar, cama boa pra dormir, médico, nutricionista, fisioterapeuta cuidando dele… E a comida então? Cada dia um prato diferente, uma variedade de alimentos que eu só conheci quando comecei no Guarani. E as coisas só foram melhorando.

Do Guarani eu fui pro Ipatinga, depois pro Cruzeiro e agora estava no Galo. Uma trajetória maravilhosa num espaço de tempo pequeno. Fora a distância da minha família, que só aumentou — afinal, eu tinha saído de casa —, eu me sentia encantado. Até que a gente foi jogar contra o Palmeiras pelo Campeonato Brasileiro.

Contrariando as regras da comissão técnica, eu e outros dois jogadores deixamos o hotel pra curtir a cidade e voltamos só de madrugada. Eu nem joguei aquela partida. Mandaram a gente de volta pra Belo Horizonte já avisando que não fazíamos mais parte do grupo. Fiquei arrasado.

Como fui capaz de jogar tudo pela janela?

O que vai ser da minha vida agora?

Que outro grande clube vai me querer depois dessa mancada?

Eu tinha muitas perguntas, muita angústia e um diálogo travado por falta de uso com quem eu mais precisava naquele momento: meus irmãos e meus pais. Cheguei a me imaginar voltando pra casa deles lá em Osasco e falando assim: “Gente, cometi um erro, fui dispensado e não sou mais jogador de futebol”. Aí todo mundo sentaria em volta da mesa pra me dar uma força, perguntar o que tinha acontecido, dizer que ia passar, que eu ia me levantar e que, de todo modo, era uma oportunidade pra aprender.

Só imaginação, é claro. Eu não sabia como fazer isso. E meus familiares também não.

Então, ainda do hotel, sem emprego, sem salário, sem perspectiva, perdidaço, eu telefonei para um amigo que eu considero como um irmão, que eu tinha conhecido na época de escolinha de futebol. No nosso tempo de moleque, o Luiz Fernando levava uma vida bem diferente da minha. Os pais dele olhavam a lição de casa, iam às reuniões na escola, davam conselhos, levavam pra passear, até abraçavam, pô! Sempre senti que podia contar com ele e também com o pai dele, um cara que me ouvia e me ajudava nas horas de aperto. Os dois me buscaram no hotel e me levaram pra casa deles. A madrugada foi de lamentações, arrependimentos e uma conclusão: a minha carreira tinha acabado.

Depois fui mesmo pra casa dos meus pais, mas sem esperar nada. Eu só queria me trancar lá e não ter que pensar, pelo menos por um tempo. Meu empresário às vezes me ligava e “ó, não apareceu nada ainda”. Se ele dissesse que tinha pintado proposta de um time da Série D, eu iria correndo. Qualquer coisa que me tirasse daquela situação era lucro.

No finalzinho do ano, eu estava me preparando pra viajar de carro pra Pernambuco, ver uns parentes e esfriar a cabeça lá, e ele ligou: “Arruma tuas coisas pra se apresentar no Fluminense”.

Eu não podia acreditar!

A luz do poste acendeu de novo pra mim e nem tremelicou. Foi duma vez: um clube gigante contava comigo. Depois eu soube que quem pediu a minha contratação foi o Alexandre Faria, que, meses antes, ainda como diretor do Galo, tinha me mandado embora. Eu recebi aquilo como um presente. Uma segunda chance.

Prometi que não deixaria ela escapar e, lembrando dos papos com meu amigo Luiz Fernando e o pai dele, estabeleci algumas metas, porque eu precisava de metas pra levantar a cabeça e seguir em frente.

1 - Crescer como pessoa.
2 - Crescer como jogador.
3 - Ser campeão.
4 - Jogar na Europa e chegar na Seleção Brasileira.
5 - Mudar a relação com a minha família.

Eram essas as metas que manteriam a luz da rua acesa.

Fui conquistando uma por uma. Nos três ótimos anos que passei no Fluminense, eu aprendi que um grupo unido e guerreiro é capaz de tudo, até de um milagre como evitar o rebaixamento do time em 2009 — e partir daí pra ser campeão brasileiro em 2010. Também veio a minha primeira convocação pra Seleção. Por ironia, a gente estava concentrado para um jogo contra o Galo quando a notícia chegou. Eu senti como se tivesse zerado o videogame, sabe? Eu nem precisava jogar, como de fato não joguei naqueles dois amistosos contra o Irã, nos Emirados Árabes, e contra a Ucrânia, na Inglaterra. Mas só de estar ali com os caras, Thiago Silva, Pato, Coutinho, Ramires, pô, parece que a minha vida tinha mesmo dado uma boa iluminada. Eu só não conseguia dividir a alegria com o pessoal lá de casa.

Por quê? Pois é. Por quê? Eu também me fazia essa pergunta.

Um ano depois eu estava de volta à Europa, agora como jogador do Bordeaux, da França. O tamanho da mudança que essa experiência significaria na minha vida me recepcionou no aeroporto. Eu tinha saído do Rio com 37 graus e desembarcava com 1 grau negativo. Foi uma sensação maravilhosa. Uma nova etapa do meu plano de metas se realizando.

Na França, além de toda a parte cultural, eu aprendi a questão do rodízio no futebol. No Brasil, hoje mudou um pouco, mas a gente tem basicamente o time titular e o reserva. No Bordeaux todo mundo era titular e todo mundo era reserva. Dependia do local do jogo, do cansaço dos jogadores, do adversário, de um monte de coisa.

Tinha partida em que eu era titular e jogava super bem. Na seguinte eu não ficava nem no banco. Normal. Precisei me adaptar a isso. Por outro lado, eram muitas novidades e descobertas, e eu continuava sem ter com quem dividir.

Chegou uma época em que nós ficamos quatro partidas sem vencer. O presidente do clube foi no CT e falou: “Pessoal, a torcida vem hoje aqui conversar com vocês”. Eu já me vi dentro do camburão de novo, né? Fiquei aflito. Aí chegaram uns trezentos torcedores. Eles abriram uma faixa, começaram a cantar Allez Bordeaux, se aproximaram e mandaram assim: “Estamos com vocês. Cabeça erguida, que o próximo jogo nós vamos ganhar. Confiamos em vocês, au revoir”. Tinha mais dois brasileiros no time, eu virei pra eles e “Sério isso? Esse é o protesto da nossa torcida?!” Hahah…

Foram três anos bons e calmos. Às vezes, calmos demais, porque, pro bem e pro mal, a verdade é que o Bordeaux era um time de meio de tabela, apesar de ser um clube fantástico.

Então, em 2015 eu me transferi pro Sevilla, e aí o bicho pegou. A cidade respirava futebol, tudo era mais emocional, mais quente, mais tenso. Logo de cara, final da Supercopa contra o Barcelona. Que jogo inesquecível! O Barcelona abriu 4 a 1, nós empatamos, mas o Messi fechou em 5 a 4. Do lado deles, além do Messi, tinha Suárez, Iniesta, Rakitic, Mascherano, Busquets... Eu olhava e pensava: Meu Deus do céu, onde eu vim parar! Se tiver que encerrar a carreira hoje, eu encerro satisfeito. Refletia sobre essas coisas, mas, no fundo, eu queria dizer elas pro meu pai. E eu nem sabia se ele estava me assistindo, porque eu telefonava pra casa só duas ou três vezes por ano, praquela conversa de pouquíssimas palavras de sempre.

Pelo Sevilla eu ainda disputaria a Champions e seria campeão da Liga Europa. Esse título foi uma loucura.

Na semifinal, batemos o Shakhtar por 3 a 1 com um gol bonito meu fechando o placar. Aí, um dia antes da decisão contra o Liverpool, no hotel, os jogadores se reuniram para um ritual da sorte: enrolaram o roupeiro em papel higiênico — isso mesmo, papel higiênico! —, dos pés à cabeça, pro cara fazer uma corrida de obstáculos no corredor.

Cara, esse tipo de zoação na véspera de uma final de torneio continental!

Eu queria tanto dividir com alguém esses momentos. Eu me sentia bem. Estava feliz, leve, realizado com tudo o que acontecia. Na final, vencemos o Liverpool de virada numa noite em que os jornais espanhóis escreveram que eu estava “endiabrado”. Eu diria que estava abençoado. Dei caneta, corri pra caramba, dei passe pra gol. Aquele jogo foi o mais perto que consegui chegar do sentimento de jogar as peladas de dia inteiro em Osasco, quando eu era criança. Foi incrível.

Será que meu pai estava me vendo?

Bom, depois de duas temporadas e 80 jogos pelo Sevilla, me mudei pra um clube “um pouco” mais quente, o Galatasaray, da Turquia. O meu desejo era voltar pro Brasil e me aproximar da minha família. Eu me sentia pronto pra isso. Planejava sentar com meu pessoal e contar sobre as minhas andanças no futebol, os vestiários da Seleção, o meu grande tropeço no Galo, falar sobre aquele distanciamento todo entre nós que eu não entendia como tinha nascido, se instalado e tomado tanto espaço a ponto de me sufocar.

Era o que eu queria: pôr um ponto final nesse negócio. Mas a proposta do Galatasaray era excelente. Conversei com a minha esposa, que, como filha única, sempre teve uma relação diferente com os pais dela, de mais proximidade e carinho, e decidimos ficar na Europa mais uma ou duas temporadas pra fazer o nosso pé de meia.

No meu primeiro dia em Istambul, fui ver um jogo do meu novo time no estádio. Fomos eu e um uruguaio recém-contratado também. O clube vivia um momento turbulento: ia decidir na repescagem uma vaga na Liga Europa e a torcida não estava com a menor paciência. Eu não entendia uma palavra do que eles gritavam, mas dava pra perceber que coisa leve não era.

Perdemos e fomos eliminados. Eu nunca vi tanta pilha, copo e sapato jogado dentro do campo. Clima muito pesado. No dia seguinte, primeiro treino, nada do uruguaio. Perguntei pro nosso goleiro, o Muslera, cadê o cara?

— Foi embora, Mari. Depois do que ele viu ontem no estádio, não quis ficar. Foi embora.

Isso é o Galatasaray. Eu fiquei. Três anos. Fui campeão e desfrutei cada pedacinho de Istambul, uma cidade deslumbrante. E aí o Galo entra de novo na minha vida…

O Sampaoli, que tinha sido meu treinador no Sevilla, me chama. Minha filha já estava em idade de ir pra escola, vivíamos fazia muito tempo fora do Brasil, eu queria ainda poder jogar bem no meu país e, acima de tudo, eu tinha uma questão familiar pra resolver. O objetivo principal, não vou mentir, era voltar pra perto dos meus pais e dos meus irmãos e de uma vez por todas dar um jeito naquele aperto no peito que me acompanhou praticamente a minha carreira inteira.

Eu tinha esquecido da beleza de um Mineirão lotado em dia de jogo do Galo. A gente entrava em campo sabendo que ia ganhar.

- Mariano
E eu já imaginava como seria no Atlético. Se jogasse mal três ou quatro jogos, iam começar: “Ah, tá velho… Veio só pra se aposentar”. Tudo bem, eu estava preparado pra esse tipo de coisa. O que eu não esperava era que parte da imprensa seria tão maldosa a ponto de dizer que eu tinha voltado pra me “redimir” daquele caso de indisciplina de 2008, quando eu tinha 22 anos.

Pô, eu estava com 34 agora. Campeão no Fluminense, na Espanha, na Turquia. Nove anos de Europa. Champions League. Convocações pra Seleção Brasileira. E os caras me perguntando se eu vinha pra dar a volta por cima?? Sério?

Minha volta por cima eu dei nos últimos 14 anos, vocês não acompanharam, não? Eu tô no Galo de novo porque a proposta de trabalho é boa, porque o clube é muito grande e porque eu posso contribuir com o projeto ambicioso que a diretoria traçou pro ano que vem.

Até porque 2021 era um ano-chave pro Atlético: meio século desde a conquista do Brasileiro de 1971.

Começamos o ano sendo campeões mineiros. O Sampaoli tinha saído e voltou o Cuca, que me deu uma nova posição em campo. Passei a ser praticamente um terceiro zagueiro, construindo as jogadas pelo meio. Foi fundamental. Eu estava com 35 anos e podia contar com o apoio do Zaracho, uns 15 anos mais novo e que corria uns 15 quilômetros por jogo. Fomos campeões da Copa do Brasil também, mas caímos invictos na Libertadores.

Quando isso aconteceu, o torcedor passou a vir em massa pro Mineirão pra empurrar o time no Brasileiro. Cara, eu tinha esquecido da beleza de um Mineirão lotado em dia de jogo do Galo. Eu acho que é amor mesmo. A gente entrava em campo sabendo que ia ganhar, te juro. Isso a Europa não tem. De jeito nenhum. Eu sei o que tô dizendo…

Nós ganhamos o Brasileiro, demos fim ao jejum de 50 anos e naquela campanha rolou algo muito emocionante: os atleticanos levavam pro estádio cartazes e fotografias dos amigos e familiares perdidos na pandemia de Covid, que não tiveram a chance de ver o Galo campeão depois de tantos anos. Aquilo mexeu de uma maneira profunda comigo.

O meu pai já estava com 80 anos. A minha mãe, 71. Dos meus irmãos, eu não sabia quase nada. Então, como eles nunca tinham me visto jogar, achei que podia ser uma boa trazê-los de vez em quando pra BH. Ou convidá-los pra assistir às nossas partidas fora contra o São Paulo, o Palmeiras e o Corinthians. Também passei a ir mais pra Osasco nos meus dias de folga. E numa dessas descobri que meu pai, aos oitentinha, passava mais tempo jogando bola do que eu. O velho Mariano (sim, nós temos o mesmo nome) não perde uma pelada no bairro. E assiste tudo quanto é jogo, seja na várzea ou na TV. Fanático mesmo.

Eu tinha rodado o mundo procurando um jeito de me aproximar dele e a resposta sempre esteve ali, tão perto… A resposta era o nosso amor pelo futebol.

Por isso eu sou muito grato ao Atlético. Voltar pra cá foi a melhor coisa que podia ter me acontecido. Não só do lado esportivo, que segue me motivando a lutar por mais títulos e a contribuir com este clube maravilhoso da forma que eu puder. Mas também do lado pessoal. Acho que nem dá pra dizer que eu me reaproximei da minha família. Eu me aproximei. E da melhor maneira. Sem remoer o passado, sem procurar culpados, sabendo que dá pra melhorar mais e tentando finalmente ser um time.

Os Ferreira de Osasco.

Que se juntaram à Massa no Mineirão para me ver campeão. Minha mãe já não está mais entre nós, mas eu tenho certeza que ela ficou orgulhosa ao sentir aquela alegria compartilhada por toda a família antes de partir.

Hoje posso dizer que cumpri todas as metas que estabeleci no momento mais difícil da minha carreira, que, por obra de Deus, seria o começo para a realização da mais especial delas.

Obrigado por essa nova luz na minha rua sem saída, Galo. Muito obrigado. Venha o que vier, eu jamais vou te esquecer.

Fonte: theplayerstribune.com

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