Liga local é a 3ª da Europa com mais atletas do Brasil, atrás apenas de Portugal e Inglaterra
Foto: Kashima Antlers FC
Recém-transferido para o Karpaty Lviv, da Ucrânia, Stênio teve dúvidas em aceitar a proposta quando ela chegou. Entrou em contato com outros brasileiros que estão ou estiveram recentemente por lá e se informou sobre como é jogar e viver no país, em guerra com a Rússia desde 2022. Menos de um mês após a estreia, agora é seu telefone que toca. O atacante já é procurado por compatriotas que, assim como ele fez, avaliam o convite de um clube local.
As cenas de brasileiros deixando o território, no primeiro semestre de 2022, ficaram para trás. Embora a guerra permaneça, o fluxo voltou à normalidade. De acordo com levantamento do Bolavip Brasil, a Premier League ucraniana é a terceira liga europeia que mais registra atletas do país: 26, só atrás dos campeonatos português (107) e inglês (33).
Há mais de uma década, a Ucrânia é um destino tradicional de brasileiros. Somadas as duas divisões, hoje há 33 por lá. É mais que os 25 da temporada 2022/23, a primeira pós-início da guerra, e que os 26 de dez anos atrás.
O futebol reflete a própria sociedade ucraniana ao tentar seguir em frente. Passado o pânico dos primeiros meses de 2022, os times se reorganizaram. Alguns jogadores que haviam saído retornaram. Outros foram contratados. Os clubes mais próximos das zonas de confronto (na fronteira com a Rússia) se mudaram para cidades consideradas mais seguras. E a bola voltou a rolar.
— Os ucranianos, infelizmente, não têm o que fazer. Precisam se adaptar, tentam encontrar alguma normalidade no cotidiano. A gente sabe que um período de guerra não pode nunca ser normal. Mas tudo funciona regularmente: comércio, trabalho... — conta Talles Brener, que há duas semanas trocou o Rukh Lviv, onde jogava desde 2021, pelo Kashima Antlers, do Japão.
O meia chegou à Ucrânia em 2020. Com o início da guerra, usou a brecha da Fifa e atuou por empréstimo no KuPS, da Finlândia. Regressou para a temporada 2022/23 e percebeu as mudanças:
—Em princípio, não podia público. Agora, pode. Porém, limitado. Os estádios nunca estão lotados por motivos de segurança. O ucraniano gosta muito de futebol, mas não pode mais acompanhar como antes.
Se o grito da torcida perdeu força, os alarmes viraram parte da rotina. Eles soam toda vez que uma ameaça é detectada no espaço aéreo e indicam que as pessoas devem se abrigar. As partidas são paralisadas e só voltam quando autorizadas.
Em sua segunda temporada no Karpaty Lviv, o atacante Igor Neves se recorda de um jogo em Sumy, a poucos quilômetros da fronteira, que levou cerca de quatro horas para terminar. Assim como das perfurações nas paredes do estádio em Bucha, uma das primeiras cidades atacadas pelos russos.
No dia a dia, em Lviv, onde mora com a mulher, o contato com a guerra é raro. Igor é lembrado de que ela existe quando há queda de luz e a sirene toca (ambos os eventos são esporádicos). E quando o time recebe vídeos ou até mesmo a visita de torcedores que ingressaram nas forças de combate.
— Algumas pessoas da cidade têm familiares lutando, e nós conseguimos ver a angústia deles. E também de alguns companheiros de clube, que têm amigos que foram participar. Mas, de uma maneira incisiva mesmo, a gente não consegue ver a guerra — relata o atacante de 25 anos, que fez a base no Athletico e no Criciúma, mas, como profissional, só jogou fora do Brasil.
É nos jogos fora de casa que a guerra mais se impõe. Com o espaço aéreo fechado, o deslocamento dos times precisa ser de ônibus — em situações raras, de trem. São até 12 horas de estrada.
Mas, afinal, o que leva os brasileiros a um país nessas condições? Na verdade, há um encontro de interesses. Na volta do futebol em meio à guerra, os milionários aos quais os clubes são ligados diminuíram os investimentos em contratações e salários.
— Os atletas europeus que frequentavam Ucrânia e Rússia já não vão mais. E o brasileiro sem passaporte europeu tem dificuldade para jogar no continente. Na maioria dos outros países, as vagas são muito limitadas — explica Marcelo Robalinho, agente que tem entre seus clientes Talles Brener e o meia Iago Siqueira, do NK Veres Rivne.
Com exceção dos contratados pelo Shakhtar, a maioria dos brasileiros na Ucrânia tinha dificuldade de encontrar uma vaga nos clubes da Série A, principalmente após os sucessivos aumentos no limite de estrangeiros. Em geral, eles frequentavam times que pagam salários menores e, pior, passam meses sem competição.
Na Ucrânia, os contratos são em euro. E, mesmo em guerra, o país é uma porta de entrada para a Europa.
— Se fizer uma boa temporada aqui, pode ser que vá para um clube grande, que disputa outras competições fora da Ucrânia. É uma oportunidade de, me saindo bem, talvez ir para outro clube da Europa — projeta Stênio, de 21 anos, revelado pelo Cruzeiro e que passou a última temporada emprestado ao AVS, de Portugal.
Juan Bezerra também pensa assim. Em 2022, ele estava de malas prontas para o SC Dnipro-1 quando a guerra o obrigou a mudar os planos. No ano passado, veio nova oferta, do Oleksandriya. Pouco aproveitado no profissional do Vasco, não pensou duas vezes. Por ironia, o Dnipro-1, à beira da falência, se desfez do elenco este ano. Já o atacante de 21 anos se firmou e é um dos destaques do Oleksandriya, o surpreendente líder do começo de campeonato.
— As pessoas me param quando saio na rua. Pedem para tirar foto no restaurante e nos táxis. É muito gratificante — diz, orgulhoso.
Fonte: GloboEsporte